quinta-feira, 16 de junho de 2011

Ah! poeta gauche, como gostaria de lhe contar essa história maravilhosa...

Apesar de ser agnóstico declarado e um marxista ferrenho, Carlos Drummond de Andrade deixou também trabalhos belos e engenhosos. Por ser meu objeto de estudo nesse atarefado final de semestre, resolvi deixar aqui dois poemas do seu livro Claro Enigma, de 1951. 

Diferentemente das suas poesias de cunho político, como as do livro A Rosa do Povo, Drummond revela em Claro Enigma seu lado introspectivo, refletindo acerca de questões existenciais próprias e universais. Vê-se que, chegado à maturidade, o poeta esta rodeado de memórias de seu passado. Logo, sua cidade natal, o tempo, a morte e a finitude das coisas em geral são frequentes nos poemas da obra, muitas vezes vistos pelo viés do pessimismo e da angústia.

Gustavo Corção respondeu uma vez (veja o artigo completo) a um artigo do poeta gauche acerca do suicídio de um rapaz apaixonado. Corção alerta ao "poeta de alma grande" para a necessidade de "descobrir a verdadeira extensão do mundo e da vida". E finaliza: "Ah! essa história maravilhosa, que a mim me contaram, como eu gostaria de lhe contar, longamente! longamente!"

Realmente, quantas mentes brilhantes se confundiram com outras histórias...


EVOCAÇÃO MARIANA

A igreja era grande e pobre. Os altares, humildes.
Havia poucas flores. Eram flores de horta.
Sob a luz fraca, na sombra esculpida
(quais as imagens e quais os fiéis ?)
ficávamos.

Do padre cansado o murmúrio de reza
subia às tábuas do forro,
batia no púlpito seco,
entranhava-se na onda, minúscula e forte, de incenso,
perdia-se.
 
Não, não se perdia...
Desatava-se do coro a música deliciosa
(que esperas ouvir à hora da morte, ou depois da morte, nas campinas do ar)]
e dessa música surgiam meninas - a alvura mesma -] 
cantando.

De seu peso terrestre a nave libertada,
como do tempo atroz imunes nossas almas,
flutuávamos
no canto matinal, sobre a treva do vale. 



ENCONTRO

Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho.
Se a noite me atribui poder de fuga,
sinto logo meu pai e nele ponho
o olhar, lendo-lhe a face ruga a ruga.

Está morto, que importa? Inda madruga 
e seu rosto, nem triste nem risonho,
é o rosto antigo, o mesmo. E não enxuga
suor algum, na calma de meu sonho.

Ó meu pai arquiteto e fazendeiro!
Faz casas de silêncio, e suas roças
de cinza estão maduras, orvalhadas

por um rio que corre o tempo inteiro, 
e corre além do tempo, enquanto as nossas
murcham num sopro fontes represadas.

Carlos Drummond de Andrade, Claro Enigma, 1951 
 

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Cada um tem um mundo dentro de si

Ultimamente tem sido difícil manter as publicações do blog constantes, como vocês já devem ter percebido. O temido final de semestre se aproxima, as tarefas da faculdade se acumulam, o tempo é escasso e, além disso, fora da vida acadêmica, algumas responsabilidades também aumentam. Há alguns meses, comecei a corrigir redações de alunos  para um colégio da cidade. Apesar do tempo necessário que se leva para realizar um bom trabalho, essa nova atividade tem valido a pena. Não, não tenho um retorno financeiro invejável. Apesar de ser uma fonte de renda, essa não é a principal razão para que o fato de eu corrigir redações me seja agradável.

Ao ler essas páginas, tenho acesso às informações do que se passa na mente desses jovens, dos seus sentimentos, das suas histórias, dos seus diversos modos de enxergar o mundo e a vida. Não são simples dados, sem significância. Também não passo a caneta vermelha riscando qualquer coisa em um papel. Apesar de serem simples manifestações da escrita em idade escolar, esses textos revelam os sistemas de valores de seus autores e, ao ler esse conjunto variado, tenho uma certa noção da alma e da mentalidade desses indivíduos em formação. Quando digo alma, não me refiro ao seu estado de graça ou não, mas às inclinações e às peculiaridades que são próprias a cada personalidade.

É muito curioso notar as semelhanças e as diferenças entre os textos. O formato da letra, a pressão da tinta no papel, a escolha das palavras, os modos de organizar os diversos elementos da sentença e o conteúdo dos textos formam uma combinação única a cada aluno, mas que às vezes se mescla com a de outro colega. As letras mais bonitas geralmente são de meninas, assim como os textos mais bem articulados. Mas há, de vez em quando, alguns meninos que fogem à regra e, quando surpreendem, o fazem  a valer.

Um tema sobre o qual eles escreveram, e que foi muito interessante ler os resultados, foi a descrição de uma cena que tenha sido importante na vida deles. Esse tema mostrou-me o quão distorcidos estão os valores da sociedade e como eles já estão se cristalizando na mente dos jovens, sendo considerados normais. Além disso, o desconhecimento da verdadeira religião, e até mesmo a aversão a qualquer uma delas, deixam suas marcas nas redações que li. Uma delas, foi a de um garoto, contando que ficou surpreso ao ver duas moças se beijando na boca perto da escola. Mas, depois de refletir um pouco, concluiu que elas eram muito corajosas por enfrentarem o "preconceito" e que não havia nenhum problema naquela atitude, pois elas deviam se gostar de verdade.

Outra redação, de uma menina, contava a tristeza que sentiu quando os pais lhe contaram que iriam se separar. Mas que hoje, ela vê que isso foi o melhor e está feliz, pois a nova "esposa" do pai está grávida e o "namorado" da sua mãe é muito bonzinho com as duas. Havia também uma, de outra garota, que contava como foi importante seu primeiro "namorado" quando ela tinha 14 anos...

Apesar dessas histórias tristes, li também algumas alentadoras, que são verdadeiras sementes de esperança nesse deserto que é o mundo. Numa delas, um menino contava feliz do nascimento da irmãzinha e dos detalhes desse dia especial que o marcou tanto. Outro, falou das férias que passava no sítio dos avós durante a infância. Contou minuciosamente dos detalhes da casa, do cuidado da avó com a comida, o cheiro de café, as pescarias com o avô num lago próximo. Aliás, muitas foram as redações que falavam sobre os avós. Uns, já falecidos, com uma narrativa repleta de saudades, outros ainda vivos, mas doentes ou enfrentando a viuvez. 

Uma redação que se destacou foi a de um garoto contando os últimos meses de sua madrinha, que falecera devido a um câncer. Foi lindo o relato das lembranças dele com ela e ficou muito clara a importância desse laço sacramental que une padrinhos e afilhados. E, em contrapartida ao rapaz que escrevera elogiando a coragem das moças que se beijavam, um outro menino, que aliás escrevia muito melhor que o primeiro, relatou, inconformado, o momento chocante em que viu duas mulheres trocando beijos imorais no metrô com a maior naturalidade.

Cada um tem um mundo dentro de si que o revela quando escreve. Quando corrijo essas redações, deparo-me com um pedacinho de cada uma dessas almas e, mesmo que nem sempre o que descobrimos seja ordenado e virtuoso, é maravilhoso mergulhar nessas ideias, histórias e sentimentos. Afinal, depois de quase ter perdido a esperança e de ter ficado com o coração apertado ao ver almas tão jovens defendendo o erro, aparece uma que vai na direção contrária e nos conforta, nos enche de esperança. Uma verdadeira consolação de Nosso Senhor.