
Diferentemente das suas poesias de cunho político, como as do livro A Rosa do Povo, Drummond revela em Claro Enigma seu lado introspectivo, refletindo acerca de questões existenciais próprias e universais. Vê-se que, chegado à maturidade, o poeta esta rodeado de memórias de seu passado. Logo, sua cidade natal, o tempo, a morte e a finitude das coisas em geral são frequentes nos poemas da obra, muitas vezes vistos pelo viés do pessimismo e da angústia.
Gustavo Corção respondeu uma vez (veja o artigo completo) a um artigo do poeta gauche acerca do suicídio de um rapaz apaixonado. Corção alerta ao "poeta de alma grande" para a necessidade de "descobrir a verdadeira extensão do mundo e da vida". E finaliza: "Ah! essa história maravilhosa, que a mim me contaram, como eu gostaria de lhe contar, longamente! longamente!"
Realmente, quantas mentes brilhantes se confundiram com outras histórias...
EVOCAÇÃO MARIANA

Havia poucas flores. Eram flores de horta.
Sob a luz fraca, na sombra esculpida
(quais as imagens e quais os fiéis ?)
ficávamos.
Do padre cansado o murmúrio de reza
subia às tábuas do forro,
batia no púlpito seco,
entranhava-se na onda, minúscula e forte, de incenso,
perdia-se.
Não, não se perdia...
Desatava-se do coro a música deliciosa
(que esperas ouvir à hora da morte, ou depois da morte, nas campinas do ar)]
e dessa música surgiam meninas - a alvura mesma -]
cantando.
De seu peso terrestre a nave libertada,
como do tempo atroz imunes nossas almas,
flutuávamos
no canto matinal, sobre a treva do vale.
ENCONTRO
Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho.
Se a noite me atribui poder de fuga,
sinto logo meu pai e nele ponho
o olhar, lendo-lhe a face ruga a ruga.
Está morto, que importa? Inda madruga
e seu rosto, nem triste nem risonho,
é o rosto antigo, o mesmo. E não enxuga
suor algum, na calma de meu sonho.
Ó meu pai arquiteto e fazendeiro!
Faz casas de silêncio, e suas roças
de cinza estão maduras, orvalhadas
por um rio que corre o tempo inteiro,
e corre além do tempo, enquanto as nossas
murcham num sopro fontes represadas.
Carlos Drummond de Andrade, Claro Enigma, 1951
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