Cora Coralina (1989-1985) |
Segue abaixo um trecho de um dos poemas que mais marcaram minha infância e que reencontrei depois de tantos anos. É da escritora brasileira Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, que publicou seu primeiro livro com mais de 70 anos e deixava em suas obras sua simplicidade e o cotidiano da vida do interior.
Desde criança, sempre me pareceu uma delícia viver antigamente! Quanto esmero que se via e hoje não se vê mais? Podiam ser esforços "econômicos", mas havia esforços. Havia uma importância real nos acontecimentos do dia a dia.
As visitas fora de hora, os bolos recém tirados do forno, o respeito, as conversas despretensiosas e sadias, a simplicidade... Aonde foi parar tudo isso hoje? Viraram antiguidades...
Antiguidades
Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.
Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)
Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.
A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção. Seriamente.Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.
Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada...
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais !
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário, alto, fechado,
impossível.
Era aquilo, uma coisa de respeito.
Não pra ser comidoassim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.(...)
Cora Coralina
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