quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Antiguidades

Cora Coralina (1989-1985)
Segue abaixo um trecho de um dos poemas que mais marcaram minha infância e que reencontrei depois de tantos anos. É da escritora brasileira Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, que publicou seu primeiro livro com mais de 70 anos e deixava em suas obras sua simplicidade e o cotidiano da vida do interior. 

Desde criança, sempre me pareceu uma delícia viver antigamente! Quanto esmero que se via e hoje não se vê mais? Podiam ser esforços "econômicos", mas havia esforços. Havia uma importância real nos acontecimentos do dia a dia.

As visitas fora de hora, os bolos recém tirados do forno, o respeito, as conversas despretensiosas e sadias, a simplicidade... Aonde foi parar tudo isso hoje?  Viraram antiguidades...




Antiguidades

Quando eu era menina

bem pequena,

em nossa casa,

certos dias da semana

se fazia um bolo,

assado na panela

com um testo de borralho em cima.


Era um bolo econômico,

como tudo, antigamente.

Pesado, grosso, pastoso.

(Por sinal que muito ruim.)


Eu era menina em crescimento.

Gulosa,

abria os olhos para aquele bolo

que me parecia tão bom

e tão gostoso.


A gente mandona lá de casa

cortava aquele bolo

com importância.

Com atenção. Seriamente.

Eu presente.

Com vontade de comer o bolo todo.


Era só olhos e boca e desejo

daquele bolo inteiro.

Minha irmã mais velha

governava. Regrava.

Me dava uma fatia,

tão fina, tão delgada...

E fatias iguais às outras manas.

E que ninguém pedisse mais !

E o bolo inteiro,

quase intangível,

se guardava bem guardado,

com cuidado,

num armário, alto, fechado,

impossível.


Era aquilo, uma coisa de respeito.

Não pra ser comido

assim, sem mais nem menos.

Destinava-se às visitas da noite,

certas ou imprevistas.

Detestadas da meninada.(...)

Cora Coralina




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