quinta-feira, 7 de abril de 2011

"Eu sei, mas não devia"

Rua Direita, São Paulo, no séc. XX
O carnaval passou e o ano definitivamente começou. Começamos a sentir o cansaço do dia a dia e voltamos a sonhar com as férias. Tenho estado muito cansada, durmo em qualquer lugar. Outro dia, um senhor fez a gentileza de me acordar no metrô, pois já estava na última estação e continuava cochilando encostada na janela. Mas não é algo que acontece somente comigo. É certo de que, ao entrar em um ônibus ou em um vagão de metrô, encontraremos alguém "caindo pelas tabelas", como diz minha mãe.

Também tenho ficado incomodada com muito barulho. Pessoas falando alto demais, "músicas" tocando alto em mp3 players,  buzinas e motores de veículos são constantes nas grandes cidades. O movimento frenético dos carros pelas avenidas de São Paulo também é de deixar qualquer ser humano desnorteado. Não são os carros que vivem correndo, mas as pessoas todas estão aceleradas, com pressa, sempre atrasadas. Cansadas...

 O nível de exigência no trabalho ou nos estudos é sempre crescente. O celular, o automóvel, a internet permitiram com que o chefe o encontre durante suas férias e lhe exija um relatório urgente para o dia seguinte, ou que um professor solicite uma pesquisa extensa em um prazo curto. Tudo instiga a competição, a agressividade, o egoísmo, o nervosismo. Não é de se impressionar o aumento do número de casos de depressão e outros distúrbios psíquicos, além de outras doenças, como as cardiovasculares. Não é "frescura" moderna. Dormimos mal, comemos mal, vivemos mal. As pessoas estão realmente sofrendo com isso. Até o ponto em que o corpo e a mente entrem em pane, dando um alerta, pedindo para diminuir o ritmo, pois eles não aguentam mais levar uma vida assim...

Não estamos vivendo, mas sobrevivendo, apenas. Nos acostumamos a passar pelo Rio Pinheiros exalando sua podridão, a caminhar entre a fumaça dos carros, a voltar pra casa depois do pôr do sol e a sair dela antes dele nascer, a jantar sozinho a comida do potinho da geladeira, a tomar remédio pra dor de cabeça toda semana, a andar em meio ao lixo das calçadas, a viver em meio ao feio e não buscar mais o belo, a viver sem a Verdade, sem Deus.

Há quanto tempo não nos dedicamos a uma boa leitura, passamos um momento de alegria entre os amigos, realizamos um passeio em família, saboreamos uma refeição com calma, ouvimos a uma música que gostamos ou até mesmo ao som da chuva, sem reclamar que ela vai atrapalhar o trânsito da cidade? 

São tantos afazeres que muitas vezes deixamos de rezar piedosamente, de meditar sobre os Mistérios da Cruz, de buscar os sacramentos, de dedicar um tempo apenas ao que realmente importa. Vamos sendo afastados de Deus e, portanto, da felicidade. Ora, mas que vida mais sem sentido é essa? Se estamos aqui com o único objetivo de sermos merecedores do Céu e da felicidade eterna, como podemos deixar ser tão distraídos de nosso principal fim??



Eu sei, mas não devia 


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.


A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

  Marina Colasanti (1972)
Parque da Juventude, São Paulo

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